FILME: “JANELA DA ALMA” (2001)
DIA: 20/05 (sexta-feira)
Horário: 19h
Sinopse: Filme brasileiro premiado, “Janela da Alma” (2001) é um documentário de João Jardim e Walter Carvalho. Dá voz e vez a dezenove pessoas com deficiências visuais diversas, desde a miopia discreta até a cegueira total. Elas apresentam sua visão de si mesmas, suas observações acerca dos outros e de suas percepções do mundo. Fazem revelações pessoais e inesperadas sobre vários aspectos relativos à visão. O documentário resulta em uma reflexão emocionada sobre o ato de ver, ou não, o mundo e como isso é feito. Entre essas pessoas, um dos mais interessantes depoimentos é o do escritor português José Saramago, celebridade convidada por ter, em 1995, publicado o romance “Ensaio sobre a Cegueira”. O autor conquistou o Prêmio Nobel de Literatura três anos depois.
Temas abordados: subjetividade, relativismo, inclusão
Debatedores convidados:
- Oriana Holsbach Hadler – Psicóloga, com formação em Psicodrama e mestre em Psicologia
- Roberta Peters – Graduação em Ciências Sociais e mestrado em Antropologia
- Oscar Ulloa - Psicólogo, doutorando em Educação
Texto produzido pela debatedora Roberta Peters
Texto produzido pela debatedora Roberta Peters
Comentário sobre o filme Janela da alma:
São muitas as reflexões que o filme nos permite, até porque a visão é um dos sentidos mais importantes se não for o mais importante. Então, o filme nos provoca o tempo todo a pensar a dicotomia entre o fisiológico e o simbólico, ou seja, olhar é o mesmo que ver? Qual o significado do olhar? Vemos exclusivamente com os olhos? Vou tentar, ao longo do texto, levantar algumas possibilidades de resposta para essas questões.
Sem dúvida alguma, a função fisiológica da visão deve ser entendida através dos filtros existentes entre a realidade e a representação dessa realidade. Esses filtros podem ser perceptivos, porque não podemos conhecer o que não conseguimos perceber pelos órgãos sensoriais (e eles são cinco), também podem ser emocionais já que a emoção é um processo básico do ser humano e atencional, uma vez que precisamos processar o que vemos e vivemos.
Mas todas essas explicações técnicas de como operamos enquanto humanos nos remetem a uma questão filosófica que surgiu com o homem e que até hoje não objetivamos: afinal de contas o que é a realidade? Essa questão trazida no filme pelo escritor filósofo José Saramago é de extrema relevância na medida que pretendemos compreender o significado de tudo isso. Saramago resgata um outro grande filósofo chamado Platão, o qual escreveu uma obra intitulada A república em que narra um mito que até hoje serve como metáfora para pensarmos a respeito do significado do que vemos e do que é profundamente a realidade. O objetivo de toda a filosofia é encontrar as verdades, é chegar à essência das coisas, não se contentar com as aparências e esse movimento extrapola qualquer experiência sensorial porque é uma experiência também racional, intelectual e inteligível.
Para quem não conhece o mito da caverna de Platão, gostaria de apresentar um trecho:
Imagina homens em morada subterrânea, em forma de caverna, que tenha em toda a largura uma entrada aberta para a luz; estes homens aí se encontram desde a infância, com as penas e os pescoços acorrentados, de sorte que não podem mexer-se nem ver alhures exceto diante deles, pois a corrente os impede de virar a cabeça; a luz lhe vem de um fogo aceso sobre uma eminência, ao longe atrás deles, imagina que, ao longo desse caminho, ergue-se um pequeno muro, semelhante aos tabiques que os exibidores de fantoches erigem à frente deles e por cima dos quais exibem as suas maravilhas.
Os prisioneiros só enxergam as sombras projetadas pelo fogo sobre a parede da caverna. Imaginemos que um prisioneiro se liberta e finalmente enxerga os objetos reais, não ficaria ele confuso se a realidade são os objetos que agora está vendo ou as sombras que vira até então? Será obrigado a decidir onde se encontra a realidade no que vê agora ou nas sombras em que sempre viveu? Esse sujeito vive ferido pela luz, uma vez que seus olhos não se acostumam facilmente com a nitidez das coisas iluminadas. Tal aprendizado é doloroso e gera medo na medida que o mais confortável seria retornar à caverna.
O que é a caverna para o Platão? O mundo das aparências em que vivemos. Que são as sombras projetadas no fundo? As coisas que percebemos. O que são as correntes? Nossos preconceitos e opiniões, nossa crença de que o que estamos percebendo é a realidade. O que é a luz do sol? A luz da verdade. O que é o mundo iluminado pelo sol da verdade? A realidade.
No filme, Saramago afirma que nunca vivemos tanto na caverna de Platão. Hoje as imagens substituem a realidade, imagens essa que existem em superabundância, como nos traz o diretor Win Wenders. Por isso, somos incapazes de prestar atenção, de nos emocionarmos, processos, como falamos, básicos do ser humano. O tempo todo às imagens querem nos vender algo, mas o que o precisamos é que essas imagens produzam um significado. Essa é uma das características do que chamamos de pós-modernidade: o imediatismo, a superficialidade e o caráter descartável da informação, uma vez que não temos mais tempo. Citando Win Wenders, temos tudo em excesso, menos o tempo: tempo para sonhar, tempo para pensar, tempo para sentir.
Não conseguimos mais ver! Segundo o neurologista Oliver Sacks, somos criaturas emocionais. No entanto, vivemos em um processo de banalização das emoções as quais ocorrem através de todas as nossas sensações e experiências que extrapolam a visão. Se a visão interior é a que a gente desenvolve mais, segundo o poeta, estamos realmente nos cegando na medida que o humano não nos sensibiliza mais: conseguimos passar por um morador de rua, um pedinte, com toda a naturalidade; conseguimos atropelar um cão na rua e não parar o carro; segregar as pessoas pela cor, pela classe social ou até mesmo por ter algum transtorno mental. O olhar dos outros provoca uma lesão interna, como relatou a cineasta Marjut, muitas vezes irreversível. Sem dúvida, Saramago, nos cegamos da sensibilidade, embrutecemos.
Como é possível a humanidade produzir coisas tão sujas, mas ao mesmo tempo outras tão belas como a arte, a música, o afeto e o próprio ser humano. Aqueles que não enxergam com os olhos, o fazem com tantos outros órgãos e são capazes de ver a si próprios e ao mundo com muita lucidez. Vivemos em um mundo visual, mas aprendemos constantemente com aqueles que não compartilham desse mundo. Chamou-me muita a atenção o relato do vereador de Belo Horizonte que disse que não tem nenhuma dificuldade sexual, porque o toque no escuro seduz muito mais do que a imagem. O tato é dos nossos sentidos, o que mais transmite afeto e o paradoxo é que cada vez nos tornamos mais individuais e nos tocamos menos. Portanto, creio eu, que não vemos exclusivamente com os olhos.
Mas ainda me pergunto se ver e olhar significam a mesma coisa? Enquanto a palavra ver me reporta a algo mais técnico e enquadrado, o olhar me remete a algo mais complexo e amplo que envolve nossas bases culturais e psíquicas de forma a elaborar um significado. O social produz subjetividades e por isso me pergunto se realmente olhamos ao vivo, como o faz o fotógrafo cego. Tenho formação em antropologia e agora me aventuro na formação em psicologia e cada vez mais me dou conta o quanto o olhar é um treino e saber olhar requer sensibilidade, mas também requer conhecimento. Cada área do saber treina o nosso olhar para algo. Não nasci antropóloga, aprendi a ser antropóloga. Todo o aprendizado cria um viés para o nosso olhar. Eu posso olhar um morador de rua e pensar que ele é um construto da sociedade de classes, do capitalismo que produz indivíduos mais e menos humanos, mas também posso olhar a mesma cena e pensar que é uma pessoa que não se esforçou o suficiente na vida e por isso é um perdedor, ou ainda pensar que ele é fruto de um arranjo familiar que o desorganizou profundamente. Ou seja, o entendimento do que é a realidade é enviesado, não é neutro. Não há neutralidade no nosso olhar, nosso olhar é sim político e produtor de discursividades, porque a forma como olhamos o mundo fala muito daquilo que somos, daquilo que fomos e do desejamos ser.
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